EVERESTE – Para lá do
limite!
Já passava do meio-dia
quando aterrou em Kathmandu (1.400 m altitude), capital do Nepal, mais um voo
proveniente do centro da Europa cheio de alpinistas para o início de mais uma
época de escaladas nos Himalaias. Chegam todos com um único objectivo: chegar
ao cume da montanha mais alta do mundo, o Evereste (8.848 m), essa maravilha
geológica começada a construir há cerca de 70 milhões de anos, durante o
Cretáceo Superior, quando a placa Indo-australiana rumou para norte e colidiu
com a placa Euroasiática formando os Himalaias, um processo que ainda hoje
decorre. Mas ainda mais extraordinário é saber que aquelas rochas que formaram
estas montanhas estiveram outrora no fundo do mar. É mais um feito incrível da mãe
natureza!
Evereste - Face Norte
Depois de algum tempo de espera é hora de apanhar outro voo
para Lukla (2.860 m), uma pequena localidade junto à fronteira com o Tibete,
conhecida por ter o aeroporto mais perigoso do mundo e por ser a porta de
entrada para o Evereste. Lukla significa o começo de uma aventura sem igual à
face da terra, bela, desgastante e perigosa. Pela frente têm uma caminhada de 6
a 8 dias, acompanhados por centena e meia de sherpas e algumas dezenas de
iaques. São eles que levam as várias toneladas de material para o sopé da montanha,
uma vez que, tanto homens como animais, estão perfeitamente adaptados à
altitude e ao terreno difícil. Pelo caminho vão pernoitando em pequenas
aldeias, locais remotos e a cada vez a uma maior altitude, onde podem comer,
descansar e tomar um banho.
Evereste - Face Sul |
Das várias rotas para chegar ao cume do Evereste há duas que são as mais usadas: pela face norte, do lado do Tibete (China), e pelo lado sul, do lado do Nepal. Esta última é a mais usada pelos alpinistas uma vez que é a mais “fácil” e a que requer menos técnica.
Chegados a 5.300 m de altitude, em pleno glaciar de Khumbu,
do lado nepalês, é hora de montar o Acampamento Base (AB). Juntam-se a outras
dezenas de expedições oriundas dos mais variados lugares do mundo e que se
encontram já no local. É a partir daqui que tudo se vai desenrolar. Durante os
próximos dois meses esta pequena cidade será o centro de tudo para aqueles que
desafiam a montanha.
Aqui encontramos restaurantes, cozinhas, hospitais,
comunicações, duches, tudo montado em tendas apropriadas para o efeito. A
logística envolvida é algo de notável. Levam tudo aquilo que precisam à
excepção, claro, da água. Toda a água utilizada é proveniente do gelo que há
ali à volta. Só em comida cada expedição leva, por exemplo, qualquer coisa como
1.500 Kg de arroz, 1.500 Kg de massa, 7.000 ovos, 1.000 Kg tomate ou 1.500 Kg
de carne que é guardada num frigorífico natural, ou seja, enterrada dentro de
grandes recipientes de plástico no solo gelado.
Iaques usados para transporte |
As primeiras duas ou três
semanas passadas aqui vão servir para os alpinistas fazerem aquilo que se chama
“aclimatização”, isto é, adaptar o organismo à temperatura, à altitude e ao ar
cada vez mais rarefeito. O controlo sistemático do ritmo cardíaco e dos níveis
de oxigénio no sangue são uma obrigatoriedade. As náuseas, as dores de cabeça,
vómitos ou a diarreia são uma realidade para os menos preparados, nada que uma
visita de rotina ao médico que cada expedição leva não resolva. A estas
altitudes a desidratação é enorme o que obriga cada alpinista a uma ingestão de
vários litros de líquidos por dia e uma alimentação rica sobretudo em calorias.
Terminada a aclimatização inicial chega o momento de
começarem as ascensões para os acampamentos de altitude. O terreno já foi entretanto
preparado por alguns dos sherpas que têm como missão a fixação de cordas, a
montagem de escadas de alumínio e o transporte do material para os acampamentos
mais elevados, além de acompanharem os alpinistas até ao topo. Ninguém vai para
estas montanhas sem os sherpas.
O primeiro obstáculo que os alpinistas têm pela frente dá
pelo nome de “Icefall” ou cascata de gelo. Um labirinto de blocos de gelo
deslizante do tamanho de casas com quase um quilómetro e meio de extensão a uma
altitude de 5.486 m. As fendas profundas no gelo que têm de atravessar e as
imprevisíveis avalanches tornam a caminhada extremamente perigosa. Alpinistas
com experiência conseguem fazer o percurso em meia-dúzia de horas. A maioria
opta pela subida ainda de noite ou ao raiar do dia para aproveitar o facto de o
gelo estar mais estável. Este é o local que mais mata no Everest.
Khumbu Icefall ou Cascata de Gelo |
Chegam ao campo 1 (6.000 m), um pequeno acampamento que
serve para continuarem a aclimatização. De cada vez que sobem os alpinistas
aproveitam para levar algum material de que vão necessitar para conseguir
atingir o cume. Passam aqui uma noite para irem habituando o organismo à
altitude, voltando depois a descer até ao acampamento base. Esta rotina será
repetida algumas vezes.
Concluída esta fase de adaptação, a lenta caminhada
prossegue em direcção do campo 2 (6.500 m) na base do vizinho do Evereste, o
Lhotse (8.615 m), a quarta montanha mais alta do mundo. Pelo caminho têm de
atravessar o “Valley of Silence” ou vale do silêncio. Em dias de muito calor as
temperaturas podem chegar aos 35 graus, o que, juntamente com a escassez de
oxigénio, provoca um desgaste tremendo nos alpinistas.
A próxima etapa dá pelo
nome de “Lhotse Face”, uma subida quase a pique com aproximadamente 1.300 de
comprimento em gelo glacial. Em alguns locais as inclinações podem atingir os
40, 50 e até 80 graus, o que torna a escalada lenta e muito difícil. Nunca
demoram menos de 5 -6 horas para concluir esta subida.
Vão a caminho do campo 3
(7.160 m) em plena encosta do Lhotse. As próximas dificuldades dão pelo nome de
“Yellow Band” ou banda amarela, uma zona de rocha sedimentária amarela com
poucas centenas de metros, sem gelo e que dificulta muito a progressão dos
alpinistas, uma vez que os crampons
(peças com bicos que se adaptam às solas das botas dos alpinistas) não têm
aderência.
Subida do "Lhotse Face" |
Segue-se a “Geneva Spur”, um pequeno cabeço coberto de gelo antes de
se avistar o campo 4 (7.900 m), também chamado de “South Coul”. Durante algumas
semanas os alpinistas subiram e desceram entre os vários campos, pernoitaram em
altitudes cada vez mais elevadas, foram levando tudo aquilo de que vão precisar
para a ascensão final, mas sobretudo usaram este tempo para irem adaptando o
organismo às temperaturas cada vez mais frias, à altitude e falta de oxigénio,
a chamada hipóxia.
A estas altitudes é muito comum os alpinistas começarem a
sentir o agravamento das suas condições físicas. Fadiga, náuseas, vómitos, falta
de apetite, tonturas, tosse, sangramento do nariz, desorientação, ou pior
ainda, edemas pulmonares ou cerebrais e até ataques cardíacos.
Devido à falta
de oxigénio no sangue o organismo começa a produzir mais glóbulos vermelhos
(quantos mais glóbulos vermelhos houver mais oxigénio chega às células), o que
torna o sangue mais espesso e que pode potenciar um ataque cardíaco.
Depois de
concluído o processo de aclimatização os alpinistas regressam ao ponto de
partida, o acampamento base, para alguns dias de descanso e darem início à
preparação para o ataque final ao cume.
A caminho do Topo |
Para isso acontecer têm de aguardar por
uma “janela de tempo” favorável, ou seja, esperarem por 3 ou 4 dias de bom
tempo e ventos não tão agressivos. Quando isso acontecer iniciam a rápida
ascensão até ao acampamento final, o acampamento 4, descansam umas horas, comem
e aguardam pela chegada da noite para o ataque final.
Por volta da meia-noite
começam a ascensão final até ao cume. Partem de madrugada para tentarem chegar
ao cume por volta do meio-dia e terem tempo de voltar antes que a noite caia. Entram
na chamada “zona da morte”, a 8.000 m de altitude.
Aqui o oxigénio é um terço
daquele que temos ao nível do mar, temperaturas até 40 graus negativos e ventos
insuportáveis. A esta altitude o organismo começa rapidamente a deteriorar-se,
os músculos começam a consumir as últimas reservas de gordura, o cérebro começa
a "derreter". A desorientação é um problema, mas nada que se compare com a
hipótese de vir a ter um edema cerebral ou pulmonar. As quedas podem acontecer
a qualquer momento, todo o cuidado é pouco. Convém estar o mínimo tempo
possível nesta zona, o que não invalida que se gastem entre 16 a 18 horas para
chegar ao cume e regressar ao acampamento de onde partiram.
Quatro a seis horas
depois encontram o chamado “The Balcony”, a 8.400 m, uma pequena zona mais ou
menos plana e que permite aos alpinistas recuperar o fôlego, comer e beber um
pouco de chá, trocar de garrafas de oxigénio.
A partir daqui já conseguem ver o
que muitos julgam ser o cume, mas na realidade é o chamado “The South Summit”,
o cume sul, e ainda está a uma distância de 3 a 5 horas.
A caminho do Topo |
Passado mais este
obstáculo encontram o chamado “The Cornice Traverse”, um dos locais mais
perigosos de toda a subida. Trata-se literalmente de caminhar no fio da
navalha. Um pequeno corredor de gelo com talvez 15 a 20 m de comprimento, plano
e muito estreito. Um pé em falso aqui significa uma queda praticamente a pique
de quase 3 kms, tanto para um lado como para o outro.
Próximo obstáculo: o
famoso “Hillary Step”. Nome atribuído em homenagem a Sir Edmund Hillary, o
primeiro alpinista a alcançar o cume em 1953, juntamente com o sherpa Tenzing Norgay. A 8.760 m este é o obstáculo mais
difícil de ultrapassar e o último antes do cume. Uma parede vertical de 30 m de
rocha exposta e gelo tornam a passagem muito demorada e bastante perigosa.
Apesar das cordas fixas ao longo de quase toda a subida este é um local que não
permite a mínima distração.
O cume ainda se encontra fora do alcance da vista e
a uma hora de distância. A estas altitudes os passos são dados quase em câmara
lenta, um depois do outro, seguido de uma pequena pausa para tentar conservar
as últimas energias necessárias para a descida.
Mais um derradeiro esforço e …
estão no tecto do mundo! É hora de contemplar as vistas, tirar umas fotos para
mais tarde recordar e fazer um telefonema via satélite para aqueles que mais
amam.
O famoso "Hillary Step" |
Apesar da euforia não se podem esquecer que não devem expor as mãos ou os
olhos aos elementos. O congelamento dos dedos das mãos e dos pés, do nariz, também conhecido por "frostbite", ou ainda a cegueira provocada pelos
raios ultravioleta podem ter consequências terríveis. A fadiga extrema e a
falta de oxigénio no cérebro fazem com que o discernimento não seja o mais
correcto, o que torna a descida ainda mais perigosa do que a subida.
Por esse
motivo as comunicações via rádio entre o chefe de expedição e os alpinistas são
uma constante desde que abandonaram o acampamento base. É ele que controla
todos os movimentos de quem se encontra na montanha, os avisa da mais pequena
alteração meteorológica, do oxigénio e do tempo que já gastaram, mas também
lhes recorda que ainda só fizeram metade do caminho e que está na hora de
começarem a descer.
Alpinistas no topo do Evereste |
Passar uma noite a mais de 8.000 m é a mesma coisa que
estar a assinar a sua sentença de morte. Aqueles que colapsam física e
mentalmente, que sofrem de alguma das graves doenças provocadas pela altitude e
pela falta de oxigénio, ou que simplesmente não conseguem caminhar pelo seu
próprio pé, são deixados à sua sorte, isto é, para morrer.
O cadáver mais famoso do Evereste conhecido por "The Green Boots Cave" |
Acima dos 8.000 m
não se pode fazer nada para salvar uma vida, é humanamente impossível. Onde
caírem é onde ficam. Com o passar do tempo deixam de ser de carne e osso e
passam a fazer parte da montanha, literalmente congelados no tempo. Ao todo, e
desde que começaram as expedições, em 1921, a montanha já reclamou mais de 200
vidas. Uns morrem por exaustão, outros por doença, outros por quedas, outros
porque simplesmente desapareceram. O Evereste é um cemitério a céu aberto. É
este o lado mais sinistro de tão grandiosa epopeia.
Sem comentários:
Enviar um comentário