sábado, 11 de junho de 2016

EVERESTE – Para lá do limite!

Já passava do meio-dia quando aterrou em Kathmandu (1.400 m altitude), capital do Nepal, mais um voo proveniente do centro da Europa cheio de alpinistas para o início de mais uma época de escaladas nos Himalaias. Chegam todos com um único objectivo: chegar ao cume da montanha mais alta do mundo, o Evereste (8.848 m), essa maravilha geológica começada a construir há cerca de 70 milhões de anos, durante o Cretáceo Superior, quando a placa Indo-australiana rumou para norte e colidiu com a placa Euroasiática formando os Himalaias, um processo que ainda hoje decorre. Mas ainda mais extraordinário é saber que aquelas rochas que formaram estas montanhas estiveram outrora no fundo do mar. É mais um feito incrível da mãe natureza! 
Evereste - Face Norte

Depois de algum tempo de espera é hora de apanhar outro voo para Lukla (2.860 m), uma pequena localidade junto à fronteira com o Tibete, conhecida por ter o aeroporto mais perigoso do mundo e por ser a porta de entrada para o Evereste. Lukla significa o começo de uma aventura sem igual à face da terra, bela, desgastante e perigosa. Pela frente têm uma caminhada de 6 a 8 dias, acompanhados por centena e meia de sherpas e algumas dezenas de iaques. São eles que levam as várias toneladas de material para o sopé da montanha, uma vez que, tanto homens como animais, estão perfeitamente adaptados à altitude e ao terreno difícil. Pelo caminho vão pernoitando em pequenas aldeias, locais remotos e a cada vez a uma maior altitude, onde podem comer, descansar e tomar um banho. 
Evereste - Face Sul

Das várias rotas para chegar ao cume do Evereste há duas que são as mais usadas: pela face norte, do lado do Tibete (China), e pelo lado sul, do lado do Nepal. Esta última é a mais usada pelos alpinistas uma vez que é a mais “fácil” e a que requer menos técnica.

Chegados a 5.300 m de altitude, em pleno glaciar de Khumbu, do lado nepalês, é hora de montar o Acampamento Base (AB). Juntam-se a outras dezenas de expedições oriundas dos mais variados lugares do mundo e que se encontram já no local. É a partir daqui que tudo se vai desenrolar. Durante os próximos dois meses esta pequena cidade será o centro de tudo para aqueles que desafiam a montanha.

Aqui encontramos restaurantes, cozinhas, hospitais, comunicações, duches, tudo montado em tendas apropriadas para o efeito. A logística envolvida é algo de notável. Levam tudo aquilo que precisam à excepção, claro, da água. Toda a água utilizada é proveniente do gelo que há ali à volta. Só em comida cada expedição leva, por exemplo, qualquer coisa como 1.500 Kg de arroz, 1.500 Kg de massa, 7.000 ovos, 1.000 Kg tomate ou 1.500 Kg de carne que é guardada num frigorífico natural, ou seja, enterrada dentro de grandes recipientes de plástico no solo gelado. 
Iaques usados para transporte

As primeiras duas ou três semanas passadas aqui vão servir para os alpinistas fazerem aquilo que se chama “aclimatização”, isto é, adaptar o organismo à temperatura, à altitude e ao ar cada vez mais rarefeito. O controlo sistemático do ritmo cardíaco e dos níveis de oxigénio no sangue são uma obrigatoriedade. As náuseas, as dores de cabeça, vómitos ou a diarreia são uma realidade para os menos preparados, nada que uma visita de rotina ao médico que cada expedição leva não resolva. A estas altitudes a desidratação é enorme o que obriga cada alpinista a uma ingestão de vários litros de líquidos por dia e uma alimentação rica sobretudo em calorias.

Terminada a aclimatização inicial chega o momento de começarem as ascensões para os acampamentos de altitude. O terreno já foi entretanto preparado por alguns dos sherpas que têm como missão a fixação de cordas, a montagem de escadas de alumínio e o transporte do material para os acampamentos mais elevados, além de acompanharem os alpinistas até ao topo. Ninguém vai para estas montanhas sem os sherpas.

O primeiro obstáculo que os alpinistas têm pela frente dá pelo nome de “Icefall” ou cascata de gelo. Um labirinto de blocos de gelo deslizante do tamanho de casas com quase um quilómetro e meio de extensão a uma altitude de 5.486 m. As fendas profundas no gelo que têm de atravessar e as imprevisíveis avalanches tornam a caminhada extremamente perigosa. Alpinistas com experiência conseguem fazer o percurso em meia-dúzia de horas. A maioria opta pela subida ainda de noite ou ao raiar do dia para aproveitar o facto de o gelo estar mais estável. Este é o local que mais mata no Everest. 
Khumbu Icefall
ou
Cascata de Gelo


Chegam ao campo 1 (6.000 m), um pequeno acampamento que serve para continuarem a aclimatização. De cada vez que sobem os alpinistas aproveitam para levar algum material de que vão necessitar para conseguir atingir o cume. Passam aqui uma noite para irem habituando o organismo à altitude, voltando depois a descer até ao acampamento base. Esta rotina será repetida algumas vezes. 

Concluída esta fase de adaptação, a lenta caminhada prossegue em direcção do campo 2 (6.500 m) na base do vizinho do Evereste, o Lhotse (8.615 m), a quarta montanha mais alta do mundo. Pelo caminho têm de atravessar o “Valley of Silence” ou vale do silêncio. Em dias de muito calor as temperaturas podem chegar aos 35 graus, o que, juntamente com a escassez de oxigénio, provoca um desgaste tremendo nos alpinistas. 

A próxima etapa dá pelo nome de “Lhotse Face”, uma subida quase a pique com aproximadamente 1.300 de comprimento em gelo glacial. Em alguns locais as inclinações podem atingir os 40, 50 e até 80 graus, o que torna a escalada lenta e muito difícil. Nunca demoram menos de 5 -6 horas para concluir esta subida. 

Vão a caminho do campo 3 (7.160 m) em plena encosta do Lhotse. As próximas dificuldades dão pelo nome de “Yellow Band” ou banda amarela, uma zona de rocha sedimentária amarela com poucas centenas de metros, sem gelo e que dificulta muito a progressão dos alpinistas, uma vez que os crampons (peças com bicos que se adaptam às solas das botas dos alpinistas) não têm aderência. 
Subida do "Lhotse Face"

Segue-se a “Geneva Spur”, um pequeno cabeço coberto de gelo antes de se avistar o campo 4 (7.900 m), também chamado de “South Coul”. Durante algumas semanas os alpinistas subiram e desceram entre os vários campos, pernoitaram em altitudes cada vez mais elevadas, foram levando tudo aquilo de que vão precisar para a ascensão final, mas sobretudo usaram este tempo para irem adaptando o organismo às temperaturas cada vez mais frias, à altitude e falta de oxigénio, a chamada hipóxia. 

A estas altitudes é muito comum os alpinistas começarem a sentir o agravamento das suas condições físicas. Fadiga, náuseas, vómitos, falta de apetite, tonturas, tosse, sangramento do nariz, desorientação, ou pior ainda, edemas pulmonares ou cerebrais e até ataques cardíacos. 

Devido à falta de oxigénio no sangue o organismo começa a produzir mais glóbulos vermelhos (quantos mais glóbulos vermelhos houver mais oxigénio chega às células), o que torna o sangue mais espesso e que pode potenciar um ataque cardíaco. 

Depois de concluído o processo de aclimatização os alpinistas regressam ao ponto de partida, o acampamento base, para alguns dias de descanso e darem início à preparação para o ataque final ao cume. 
A caminho do Topo

Para isso acontecer têm de aguardar por uma “janela de tempo” favorável, ou seja, esperarem por 3 ou 4 dias de bom tempo e ventos não tão agressivos. Quando isso acontecer iniciam a rápida ascensão até ao acampamento final, o acampamento 4, descansam umas horas, comem e aguardam pela chegada da noite para o ataque final. 

Por volta da meia-noite começam a ascensão final até ao cume. Partem de madrugada para tentarem chegar ao cume por volta do meio-dia e terem tempo de voltar antes que a noite caia. Entram na chamada “zona da morte”, a 8.000 m de altitude. 

Aqui o oxigénio é um terço daquele que temos ao nível do mar, temperaturas até 40 graus negativos e ventos insuportáveis. A esta altitude o organismo começa rapidamente a deteriorar-se, os músculos começam a consumir as últimas reservas de gordura, o cérebro começa a "derreter". A desorientação é um problema, mas nada que se compare com a hipótese de vir a ter um edema cerebral ou pulmonar. As quedas podem acontecer a qualquer momento, todo o cuidado é pouco. Convém estar o mínimo tempo possível nesta zona, o que não invalida que se gastem entre 16 a 18 horas para chegar ao cume e regressar ao acampamento de onde partiram. 

Quatro a seis horas depois encontram o chamado “The Balcony”, a 8.400 m, uma pequena zona mais ou menos plana e que permite aos alpinistas recuperar o fôlego, comer e beber um pouco de chá, trocar de garrafas de oxigénio. 

A partir daqui já conseguem ver o que muitos julgam ser o cume, mas na realidade é o chamado “The South Summit”, o cume sul, e ainda está a uma distância de 3 a 5 horas. 
A caminho do Topo

Passado mais este obstáculo encontram o chamado “The Cornice Traverse”, um dos locais mais perigosos de toda a subida. Trata-se literalmente de caminhar no fio da navalha. Um pequeno corredor de gelo com talvez 15 a 20 m de comprimento, plano e muito estreito. Um pé em falso aqui significa uma queda praticamente a pique de quase 3 kms, tanto para um lado como para o outro. 

Próximo obstáculo: o famoso “Hillary Step”. Nome atribuído em homenagem a Sir Edmund Hillary, o primeiro alpinista a alcançar o cume em 1953, juntamente com o sherpa Tenzing Norgay. A 8.760 m este é o obstáculo mais difícil de ultrapassar e o último antes do cume. Uma parede vertical de 30 m de rocha exposta e gelo tornam a passagem muito demorada e bastante perigosa. Apesar das cordas fixas ao longo de quase toda a subida este é um local que não permite a mínima distração. 

O cume ainda se encontra fora do alcance da vista e a uma hora de distância. A estas altitudes os passos são dados quase em câmara lenta, um depois do outro, seguido de uma pequena pausa para tentar conservar as últimas energias necessárias para a descida. 

Mais um derradeiro esforço e … estão no tecto do mundo! É hora de contemplar as vistas, tirar umas fotos para mais tarde recordar e fazer um telefonema via satélite para aqueles que mais amam. 
O famoso "Hillary Step"

Apesar da euforia não se podem esquecer que não devem expor as mãos ou os olhos aos elementos. O congelamento dos dedos das mãos e dos pés, do nariz, também conhecido por "frostbite", ou ainda a cegueira provocada pelos raios ultravioleta podem ter consequências terríveis. A fadiga extrema e a falta de oxigénio no cérebro fazem com que o discernimento não seja o mais correcto, o que torna a descida ainda mais perigosa do que a subida. 

Por esse motivo as comunicações via rádio entre o chefe de expedição e os alpinistas são uma constante desde que abandonaram o acampamento base. É ele que controla todos os movimentos de quem se encontra na montanha, os avisa da mais pequena alteração meteorológica, do oxigénio e do tempo que já gastaram, mas também lhes recorda que ainda só fizeram metade do caminho e que está na hora de começarem a descer. 
Alpinistas no topo do Evereste

Passar uma noite a mais de 8.000 m é a mesma coisa que estar a assinar a sua sentença de morte. Aqueles que colapsam física e mentalmente, que sofrem de alguma das graves doenças provocadas pela altitude e pela falta de oxigénio, ou que simplesmente não conseguem caminhar pelo seu próprio pé, são deixados à sua sorte, isto é, para morrer. 
O cadáver mais famoso do Evereste
conhecido por
"The Green Boots Cave"

Acima dos 8.000 m não se pode fazer nada para salvar uma vida, é humanamente impossível. Onde caírem é onde ficam. Com o passar do tempo deixam de ser de carne e osso e passam a fazer parte da montanha, literalmente congelados no tempo. Ao todo, e desde que começaram as expedições, em 1921, a montanha já reclamou mais de 200 vidas. Uns morrem por exaustão, outros por doença, outros por quedas, outros porque simplesmente desapareceram. O Evereste é um cemitério a céu aberto. É este o lado mais sinistro de tão grandiosa epopeia. 

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