O texto duro e
obrigatório que temos de ler sobre a Alemanha e o dinheiro
Frankfurt é o coração da finança europeia e sede das novas instalações do Banco Central Europeu Foto Tiago Miranda |
Pedimos a um especialista alemão que escrevesse sobre o futuro do Deutsche
Bank a propósito da sombra que também sobre ele agora cai nesta Europa da crise
monetária. Heiner Flassbeck, economista, ex-secretário de Estado das Finanças e
ex-conselheiro de Oskar Lafontaine sobre a reforma do Sistema Monetário
Europeu, respondeu-nos que o Deutsche Bank é um pormenor num contexto alargado.
E contrapropôs este texto longo, técnico, duro e obrigatório que analisa em
profundidade a origem da crise do euro e consequentemente da Europa. Flassbeck
coloca a Alemanha no coração da origem da crise da moeda única, revela o
segredo do crescimento alemão nos últimos 15 anos (“o país tem operado uma
política de ‘pedinchar ao vizinho’, mas só de pois de ter ‘pedinchado ao seu
próprio povo’ essencialmente através do congelamento dos salários - este é o
segredo do sucesso alemão dos últimos 15 anos”) e diz que sem um ajustamento da
maior economia europeia o fim da União ganha contornos de possibilidade real. A
perspetiva de desintegração e o decorrente colapso da união já não podem ser
ignorados, defende Flassbeck
Texto Heiner Flassbeck
Os últimos sete anos têm sido um período tumultuoso para a Europa e o
desassossego está longe de ter acabado. A crise global que começou em 2007
conduziu a um choque financeiro agudo em 2008-2009, o qual inaugurou uma
recessão em todo o mundo. A Europa – incluindo a Alemanha – foi atingida em
pleno quando o crédito contraiu e o comércio mundial retraiu. A verdadeira
crise na Europa, no entanto, começou em 2009-2010 quando a recessão induziu o
agravamento das finanças públicas, desencadeando uma crise gigantesca na zona
euro.
CRISE SEM FIM À VISTA
Havia poucas dúvidas no início de 2015 de que a crise da União Económica e
Monetária Europeia (UEM) não tinha desaparecido. Medidas pouco ortodoxas
tomadas pelo Banco Central Europeu (BCE), em particular a sua promessa de fazer
“o que fosse necessário” para estabilizar o sistema monetário em 2012,
acalmaram os mercados financeiros e forneceram espaço para que a política
económica agisse de forma estabilizadora.
Apesar disso, ao nível das instituições europeias parece estar a crescer a
consciência de que são necessárias mudanças radicais para tornar o sistema mais
resistente. E até além da obsessão tradicional com os défices fiscais e dívidas
dos governos, a adopção de um mecanismo de aviso precoce para lidar com o
núcleo do problema foi accionado com bastante rapidez. A introdução de um
Procedimento por Desequilíbrios Macroeconómicos, destinado a lidar com os
saldos de conta corrente existentes e futuros e orientar os Estados-membros no
sentido de um comércio mais equilibrado, significou algum progresso na
compreensão de que uma união monetária requer, acima de tudo, coordenação da
evolução dos preços e dos salários.
Heiner Flassbeck - A Alemanha tem de se reajustar, previne o economista Foto Michael Buholzer / Reuters |
OS PRINCÍPIOS MONETÁRIOS NUCLEARES
DA UEM
Uma união monetária é antes e acima de tudo uma união de países que querem
abdicar das suas moedas nacionais com o objectivo de criar uma moeda comum.
Abdicar de uma moeda nacional implica renunciar ao direito de as autoridades
nacionais imprimirem moedas e notas e, deste modo, implantar dinheiro nacional
(dinheiro fiat). Entrar numa união monetária também implica abdicar dos objectivos
de inflação nacionais e concordar com uma meta de inflação comum de uma união.
Quais são as maiores determinações da inflação? A prova mais importante é a
correlação alta e estável entre a taxa de crescimento do custo das unidades de
trabalho (CUT) e a taxa de inflação. Os custos da unidade de trabalho parecem
ser a determinante crucial dos movimentos gerais de preço nas economias
nacionais, bem como em grupos de economias. Se a forte correlação entre o CUT e
a inflação fosse reconhecida e colocada no coração da análise macroeconómica,
tornar-se-ia claro que o principal requisito para unidade monetária de sucesso
não seria o controlo sobre os assuntos monetários, mas a gestão das receitas e
salários nominais. Para ser específico, o objectivo de inflação comum para a
UEM foi definido pelo BCE a uma taxa próxima de 2%. Isto implicava que a regra
de ouro para o crescimento salarial em cada economia seria a soma do
crescimento de produtividade nacional mais 2%. Por esta medida, não ocorreriam
as grandes discrepâncias de inflação que levam às discrepâncias de
competitividade entre os Estados-membros.
Indústria - A SIEMENS é um dos gigantes alemães que contribuiu para que o país não baixasse as exportações Foto Sean Gallup / Reuters |
A ALEMANHA COMO FONTE DA CRISE DA
ZONA EURO
As preparações para a UEM foram profundamente falhadas porque em vez de se
discutirem em detalhe as implicações de uma união monetária e em vez de se
criarem as instituições necessárias para gerir com sucesso uma tal união, o
debate político e as decisões tomadas nos anos até 1997 – altura em que os
critérios para a entrada tinham de estar cumpridos – na realidade focaram-se na
política fiscal. Enfatizou-se em particular a limitação dos défices do sector
público a 3% do PIB, enquanto a necessidade de evitar os diferencias de
inflação e garantir a capacidade de os Estados-membros cumprirem ao longo do
tempo os objectivos comuns de inflação foram olhados como questões muito menos
importantes para o suave funcionamento da UEM.
A Alemanha, com a sua intolerância absoluta a que a inflação excedesse os
2% e a sua tradição monetária dogmática, silenciou qualquer outro ponto de
vista sobre a inflação. No entanto, a Alemanha, o maior país da União Europeia
e o bastião da estabilidade de várias décadas, decidiu experimentar um novo
modo de combater o seu alto nível de desemprego. Em conjunto com os
empresários, o Governo pressionou os sindicatos para tentar restringir o
crescimento nominal e real dos salários.
DIFERENÇAS SENSÍVEIS
A nova abordagem alemã ao mercado de trabalho coincidiu com a introdução
formal da união monetária, o que levou consequentemente a enormes divergências
nos custos nominais de unidades de trabalho entre os membros da UEM. A
principal causa destas divergências foi o simples facto de os custos nominais
das unidades de trabalho, a mais importante determinante de preços e
competitividade, se terem mantido essencialmente sem oscilações desde o início
da UEM. Em contraste, a maioria dos países da Europa do Sul tinha um
crescimento nominal de salários que excedia o crescimento da produtividade
nacional mais o objectivo de inflação acordada em comum de 2% por uma margem
baixa, mas bastante estável. França foi o único país que cumpriu exactamente o
objectivo de crescimento nominal dos salários. Os salários franceses subiram em
paralelo com a performance da produtividade mais o objectivo de inflação do BCE
a uma taxa perto de 2%.
Embora a divergência anual entre os aumentos nos custos de unidades de
trabalho fosse relativamente pequena, a dinâmica dessa “pequena” divergência
anual é capaz de, com o tempo, produzir diferenças enormes. No final da
primeira década de UEM, o custo e diferença de preço entre a Alemanha e a
Europa do Sul chegava aos 25% e entre a Alemanha e França chegava aos 15%. Por
outras palavras, a taxa de câmbio real da Alemanha tinha baixado muito
significativamente, embora as moedas nacionais já não existissem na UEM. A
divergência no crescimento dos custos das unidades de trabalho já não existiam
no seio da UEM. A divergência no crescimento dos custos das unidades era
naturalmente reflectida nas divergências de preço equivalentes. Assim, a UEM como um todo alcançou quase
na perfeição o objectivo de inflação de 2%, mas as diferenças de inflação
nacionais no seio da união foram muito sensíveis.
Tumultos - Na Europa do Sul multiplicaram-se as manifestações antieuropeístas com a Grécia à cabeça Foto Yannis Behrakis / Reuters |
É inegável que a depreciação real
que aconteceu na Alemanha teve um enorme impacto nos fluxos de comércio. Com os
custos de unidades de trabalho na Alemanha mais baixos relativamente aos dos
outros países por uma margem crescente, as exportações alemãs floresceram
enquanto as importações abrandaram. Os países na Europa do Sul e também França
e Itália começaram a registar défices comerciais e de conta corrente crescentes
e sofreram enormes perdas nas suas quotas dos mercados internacionais. A
Alemanha, ao contrário, conseguiu preservar a sua quota apesar da competição
global crescente com a China e com outros mercados emergentes. Num casulo, a
Alemanha tem operado uma política de “pedinchar ao vizinho”, mas só depois de
ter “pedinchado ao seu próprio povo” essencialmente através do congelamento dos
salários. Este é o segredo do sucesso alemão dos últimos 15 anos.
O comércio dentro da Europa tinha
sido bastante equilibrado até ao início da união monetária e ao longo de muitos
anos antes disso. A UEM marcou o início de um período de desequilíbrios
rapidamente crescentes. Até após o choque da crise financeira e dos seus
devastadores efeitos no comércio mundial, que são claramente visíveis no
equilíbrio alemão, a tendência de fundo manteve-se sem mudar. A conta-corrente
alemã continuou a aumentar depois de 2010 e até alcançou um novo recorde em
2015, da ordem dos 250 mil milhões de euros, um valor próximo de 9% do PIB.
A
ALEMANHA TEM DE SE AJUSTAR
Num mundo de taxas cambiais
flutuantes ou ajustáveis, nenhum país pode ganhar uma vantagem permanente
relativamente a outro país se este último tivesse a opção de ajustar as suas
taxas cambiais de acordo com os diferencias da inflação. Isto significa que
seriam inúteis todas as tentativas para melhorar a competitividade por via de
corte ou moderação de salários na UEM como um todo. E, no entanto, esta foi
precisamente a abordagem escolhida pela Europa como saída para a crise. Foi
também uma má opção porque o corte salarial na maioria dos países devedores
conduziu a quebras severas na procura doméstica, que é mais importante do que a
procura externa. A restrição dos salários foi contraproducente em economias com
uma taxa de exportação do PIB muito inferior a 50%.
Numa união monetária, um país com
uma taxa de exportação baixa que enfrente problemas de défice de conta-corrente
muito alto devido a uma moeda implicitamente sobrevalorizada fica sem saída. O
ajuste dos salários para baixo, por vezes erroneamente chamados “desvalorização
interna”, não só não é solução como também destrói tanto a procura interna como
a produção antes que venha a trazer algum alívio através de aumento das
exportações.
É por isto que o processo de
ajustamento no seio da UEM tem de ser pelo menos simétrico. Significa que o
país que tenha implicitamente desvalorizado a sua taxa cambial – a Alemanha –
teria de fazer um forte esforço de ajuste crescente, isto é, aumento de salários,
enquanto outros países teriam de ajustar lentamente para baixo.
Troika - A verificação aos países devedores pelos peritos da troika (Comissão Europeia, BCE e FMI) é uma das imagens de separação entre Norte e Sul Foto Tiago Miranda |
O incentivo mais fiável para o
sucesso dos esforços de ajustamento em ambos os casos seria de novo o objectivo
de inflação. Se o objectivo de inflação comum não fosse questionado, para restaurar
a competitividade internacional dos défices dos países seria necessário
aumentar os custos das unidades de trabalho e inflação no país com excedente ao
ponto de se conseguir alcançar o balanço externo em ambos os lados da união
monetária (incluindo os primeiros dez anos).
UEM
DIRIGE-SE PARA O DESASTRE
Em meados de 2016, o desemprego
na EU continuava nos 10%. Em Espanha e na Grécia, o desemprego estava acima dos
20% e o desemprego jovem era superior a uns extraordinários 50%. Mais do que
qualquer outra coisa, estes números mostram o insucesso da EU na luta contra
este problema que emergiu como a “crise da zona euro”. Enquanto a queda
significativa de crescimento e emprego foi inicialmente provocada pela crise
global de 2007-2009, após 2010 as nações devedoras da UEM ficaram privadas de
meios para combater a recessão e foram forçadas a adoptar políticas
pró-cíclicas numa escala que não se via desde os anos 30.
O mantra alemão que diz “a
austeridade é a única solução” foi aplicado a todos os países, que foram
forçados a pedir ajuda quando acabou o seu acesso aos mercados globais, ou
quando ele lhes foi vedado de facto pelas altíssimas taxas de juro. A obsessão
com os aparentes problemas fiscais dominou o debate e as condições que foram
exigidas pela troika e pelo Eurogrupo para abrir os cofres das nações credoras
concentrou-se na consolidação a qualquer preço e o mais rápido possível dos
orçamentos públicos dos países do défice.
“As divergências acumuladas
durante os primeiros anos da UEM e a terrível natureza dos programas de
ajustamento puseram em questão a própria sobrevivência da EU”
Com a persistência do domínio
alemão dos mercados de exportação e dada a recusa alemã de ajustar o seu
próprio modelo económico, o futuro da zona euro parece sombrio. A falta de
instrumentos de política para atacar a recessão, o condicionamento dos
programas de ajustamento impostos às economias em crise, o próprio ajustamento
“estrutural” disfuncional e a perspectica de deflação continuada aumentaram os
custos de permanecer na UEM ao ponto de a subida política de direita ameaçarem
a democracia e a União Europeia. O insucesso na descida das taxas de desemprego
e a crescente pobreza abriu caminho aos partidos de direita populistas e
antieuropeus, tanto nos países credores como nos devedores. Contra esse perigo,
os benefícios de ser membro da UEM são pequenos e, mais importante ainda, estão
a diminuir depressa.
Em resumo, as divergências
acumuladas durante os primeiros anos da UEM e a terrível natureza dos programas
de ajustamento puseram em questão a própria sobrevivência da EU. E, no entanto,
os líderes europeus parecem alheios a isso. Parecem ainda menos disponíveis
para empreenderem um esforço político para inverter a economia em geral e
impedir as divergências e o decorrente colapso da união já não podem ser
ignorados.
Texto publicado na edição online do Expresso dia 08-Agosto-2016
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